A Sexta-feira da Paixão, vivida nesta sexta-feira, é uma das expressões mais profundas da fé cristã e traz à tona uma mensagem que ultrapassa os limites das igrejas: o chamado ao silêncio que fala. É nesse clima de contemplação e ausência que a Igreja Católica em todo o mundo recorda a morte de Jesus Cristo na cruz, ato que representa, para milhões, o maior gesto de amor já feito pela humanidade.
A tradição litúrgica reserva para às 15h — horário em que, segundo os Evangelhos, Jesus entregou seu espírito — a Celebração da Paixão do Senhor. O rito, que ocorre sem a presença de uma missa, é dividido em três partes: liturgia da palavra, adoração da cruz e comunhão com hóstias consagradas na véspera.
“Não há missa porque este é o dia do luto, da dor, do esvaziamento. Jesus morreu. E a Igreja se cala diante desse mistério”, resume o teólogo e padre João Marcos Ribeiro.
No Vaticano, o Papa Francisco emocionou os fiéis ao destacar, durante a celebração, que a cruz de Cristo permanece como sinal de esperança. “Na cruz, Jesus não respondeu com ódio, mas com amor. Não levantou a voz, mas entregou-se em silêncio. E é nesse silêncio que Deus continua falando ao nosso coração”, disse o pontífice.
Francisco também alertou para o risco da indiferença e fez um apelo por empatia e ação: “A Paixão de Cristo continua nos crucificados do mundo: os pobres, os migrantes, os esquecidos. Peçamos um coração compassivo”.
Mais do que um evento do passado, a Sexta-feira da Paixão ganha sentido pleno na atualidade quando lida como convite à transformação interior. A data integra o tríduo pascal — ao lado da Quinta-feira Santa e do Domingo de Páscoa — e resgata os últimos momentos de Jesus até sua morte, uma narrativa que atravessa séculos e continua mobilizando comunidades ao redor do planeta.
“Quando a gente vislumbra o período de preparação para a Páscoa, isso vai acontecer por uma tradição que vem desde antes do período cristão”, afirma Ana Beatriz Dias Pinto, doutora em Teologia. Ela explica que a data da morte de Jesus coincidiu com os preparativos da festa judaica de Pessach, marcada pela libertação dos hebreus da escravidão no Egito.
Na leitura cristã, a figura de Jesus assume o papel do cordeiro sacrificado, em uma releitura que transforma o símbolo de libertação física em redenção espiritual. “Cristo era a verdadeira Páscoa e foi imolado”, destaca a especialista.
A teóloga ainda ressalta que a ausência da Eucaristia na Sexta-feira Santa representa luto. “Os católicos entram em luto na quinta-feira à noite. Não se celebra a vida. Celebra-se a entrega, o silêncio, a morte”, explica.
No Brasil, onde a religiosidade popular tem forte marca latina, a Sexta-feira Santa ganha contornos emocionais e corporais. Em muitas cidades, fiéis encenam a Via Sacra, relembrando o trajeto de Jesus até o Calvário. Beijos na cruz, genuflexões, lágrimas e cantos carregam a simbologia do dia.
“Cada povo traduz a adoração da cruz à sua maneira. No Brasil, é comum tocar e beijar. Já em países europeus, a reverência é mais contida. A fé se expressa com o corpo e com a cultura”, comenta Ana Beatriz.
A Sexta-feira da Paixão é feriado nacional no Brasil, garantido por lei desde 1995. Embora o Estado seja laico, a manutenção da data reflete a identidade cultural de um povo majoritariamente cristão.
Mas a espiritualidade do período não se restringe ao catolicismo. Religiões de matriz africana, como umbanda, candomblé, quimbanda e batuque, celebram a Páscoa com festas para Oxalá, orixá associado à figura de Cristo. “Há um sincretismo muito forte. São formas distintas de buscar o mesmo sentido: o renascimento espiritual”, pontua a teóloga.
Mesmo entre os espíritas, a figura de Jesus é vista com reverência. “A ressurreição é interpretada como a evolução do espírito, a sobrevivência da alma”, explica Ana Beatriz.
Mais do que uma memória ritualística, a Sexta-feira da Paixão lança uma pergunta a todos — religiosos ou não: o que fazemos diante da dor alheia?
“A data pode ser relida como uma oportunidade de nos voltarmos para dentro, de pensar nossa realidade social, política e econômica. Que tipo de sociedade queremos construir?”, provoca Ana Beatriz.
Neste dia de silêncio, onde não há celebração festiva nem palavras em excesso, ressoa a mensagem mais profunda da fé cristã: a de que a dor não é o fim. Depois da cruz, há a esperança. E depois do silêncio, a vida que renasce.